errâncias
14, outubro, 2019.
Inicio meu trajeto por esse con/texto pedindo desculpa a você, que tão bravamente dedica um tostão de seu tempo para essa leitura. Aqui neste breve espaço não cederei imagens de bandeja, tampouco encontrará, por mais investigativo que seja, imagens fáceis… é que isso traria muito trabalho e esforço de quem vos fala ( e não queremos que isso aconteça não é mesmo caro leitora e leitor?!) Com isso deixo a você que as forme conforme lhe convir. Meu ato será o de expor/impor aquilo que cito, singelo, nenhum pouco democrático e com muita ironia.
Digo isso e me contradigo, pois tudo é imagem, todos vivemos sob elas e somos elas… o que quero por fim?! Entenderemos logo mais, aguardemos.
“AN EXPERIMENTATION IN THE CINEMATIC COMMUNICATION
Of visual phenomena
WITHOUT THE USE OF INTERTITLES
(a film without intertitles)
WITHOUT THE HELP OF SCENARIO
(a film without a scenario)
WITHOUT THE HELP OF THEATRE
(a film without actor, without sets, etc.)”
CIDADE MODERNA
Bom, meu caro amigo ou cara amiga, comecemos pela nossa situação atual e o que nos trouxe até aqui.
Vivemos sob ruínas de um tempo, sob os entulhos de ideias e utopias, sonhos brancos que já não cabem mais — se algum dia couberam — vivemos sob aquilo que se chama ‘cidade moderna’. Em meio à sujeira já amarelada de distopias que me são tão reais tais cidades do século passado me violam com suas possibilidades, sua capacidade em deslocar rapidamente grandes multidões, um ritmo sobre-humano, seu poder de expandir-se colossalmente, sob sua ‘pureza’ … aaah tal pureza que me delimita, me encaixota, que me estabelece exata e finitamente tal qual a um objeto abjeto. Tudo tão alheiro àquilo que realmente vivo, vejo meu espaço rasgado em pedações e eu mesmo segregado.
Desfacelado, fragmentado, sujo e roto, ando por escadas rolantes, rampas, passarelas, trilhos e trilhas, canaletas e canaletas… sou subjugado a esse ritmo, toco nesse ritmo, des/conecto-me por ele, mas, se não bastasse meu corpo, tomam-me os olhos, sou amassado por uma profusão de imagens, estas possibilitadas por esse tal “modernismo” e seu desenvolvimento industrial, sua cultura de massa, sua internacionalização. Percebo que tudo se altera, me altera, minhas relações, minhas percepções. Sinto como que tudo que me toca seja apenas símbolos, símbolos epidérmicos, externos. Sou apenas atingindo tal qual São Sebastião. Sou invadido por esses vetores externos, meu corpo não é fechado. Rasgado, cortado, sangro e estabeleço sou a civilização da imagem.
Baudelaire diria que a forma da cidade muda mais rapidamente que o coração mortal. Tudo se transforma incessantemente, um amontoado de ruínas recicladas em alegorias. Me perdoe a prepotência cara leitora e caro leitor mas não posso concordar com o poeta. Meu coração urge a uma velocidade que vai além e esta cidade que se diz mudada, não passa de uma imagem amarelada e nostálgica de intenções ditatoriais, segregadoras e fascistas. Meu coração pede outra cidade que não essa alegoria, não essa ruína, essa imagem distorcida. Se algo pecou em andar para frente não fui eu, tampouco meu coração, sou já outro, um outro atual.
Me sinto a frente, vejo com um olhar onipotente e onipresente, dinâmico e versátil, intrusivo capaz de desprender dos limites do tempo e do espaço.
(CORTE)
A VIDA E A MORTE DO
OLHAR SÃO A VIDA E A
MORTE DA IMAGEM/CIDADE.
(CORTE)
CIDADE FLUXO
Mas o que vejo a frente? O que esse meu olhar tão poderoso me permite ver? Vejo tudo aquilo que me cega, um todo nada, sem textura. Sob esta “chuva infinita de imagens” sou oprimido. Clichês, padrões, controles, domesticações, massificação de uma imaginário comum, não passo de um colono desta indústria que me sufoca, me afoga em um infinito “mar sargaço”. Especulo uma realidade, a imagem precede, vivo de alegorias e reflexos, estou na Paris de Aragon, a projeção de um universo poético que se traduz pela mais intensa instabilidade.
Todos vemos, todos ‘repetimos’ o mesmo ‘ato’ de ver. Indiscriminadamente esse olhar sem precedentes desassocia aquilo que penso daquilo que sinto, permite assim toda uma instrumentação do meu entorno, edifícios, cidades que não passam de “fachadas temáticas fabricadas por uma cultura fictícia”. São repetições de dados, constatações, tautologias de uma experiência banalizada.
Perco minha densidade humana, volto inteiramente minhas forças a uma busca pela intersecção entre o real e o imaginário, a cidade é transferência e projeção.
Afirmei, confirmei e firmei e deixa-me ratificar! A cidade é instável, rasgada, desprendida, heterogênea, sombra volátil de alegorias que passam em um ritmo incessante sob meus olhos que tentam ver. Entretanto, o que não vos falei ainda, minhas amigas e amigos (mas que imagino que já esteja subentendido, por favor não me decepcione) é que existe uma característica que converge todas essas facetas. O movimento, a cinética a condição de mobilidade. Ubiquidade inerente a uma lógica de fluxos de informação e virtualização.
O espeço se esfarelou,, trocou sua fixidez e imobilidade por outro que não cessa, que não para de gerar conexões, fluir forças por diversos vetores que me fazem um sujeito seu eixo fundamental.
Por isso andemos.
ODE AO ERRAR
Pois é, minhas caras e meus caros, sabemos agora de onde viemos e onde estamos. E este onde é tão complexo e agitado, tão mas tão complexo que até me canso. Vou parar um pouco.
Recuperada as forças precisamos agora papear sobre como podemos agir perante a tudo isso. Quem sabe, como devemos agir. Vou dar-lhes uma dica, caminhe comigo, por entre esse texto, talvez inicie caminhando por ele, por mim para então caminhar pela cidade, forme suas imagens, suas arquiteturas, suas pessoas. Gosto da visão que Lepecki dá sobre esse encontro do movimento com a arquitetura e me apoio em suas falas:
“primeiro a polis se representa como um espaço de circulação de sujeitos supostamente livres, principalmente livres na sua capacidade de circular livremente… Neste palco, nesse chão supostamente liso, flauneurs e carros, os dois grandes automoventes de uma modernidade que se representa sempre enquanto um estado em perpétua mobilidade, coproduzem juntos a imagem-emblema da suposta autonomia política e cinética do cidadão contemporâneo.
Em segundo lugar, a polis se representa fisicamente, topologicamente, enquanto um lugar supostamente neutro e, consequentemente, sempre aberto para a construção infindável de toda sorte de edificações que justamente determinam e orientam o urbano como nada mais do que um palco para a circulação dos emblemas do autônomo. Daqui surge a ligação fundamental entre movimento e arquitetura como dois fatores fundamentais da construção e na autorrepresentação da polis como fantasia político-cinética da contemporaneidade.”
Me atento a passagem “supostamente neutro” que Lepecki disserta. Esse suposto me deleita pois é na suposição que encontro a minha cidade. Uma cidade dos sonhos, dos desejos, dos cruzamentos insólitos, a cidade a ser decifrada, cheia de ambiguidades e paradoxos, de bifurcamentos e atravessamentos, de imagens-movimento e também de imagens dialéticas como diria Benjamin. Cidade de paisagens contraditórias que em suas fricções e tensionamentos criam, tecem o novo. Atritos de uma vivência, não de um planejamento. Sim meus caros e minhas caras. Da vivência daqueles que como eu ousam caminhar por outras rotas, que não temem o erro, que não se curvam diante a linha reta, sobem o meio-fio que não se instrumentalizam pela razão, que não se auto impõem priores, antecedentes.
Isto é uma ode ao flâneurs aos Dândis à escória que se suja na liberdade, ode àqueles que permitam que mitos novos nasçam a cada passo, e que neles se afundem. Dos corpos deslocados, dos novos corpos políticos, que movem-se às trincheiras para conquistar a si mesmos. Sob uma complexidade tão colossal, sob alegorias e imagens “fictícias” sob toda uma realidade moderna que me assaltou, que nos assaltou a única chance que temos para uma pequena compreensão, ou melhor para uma reconexão, é andarmos privados da preguiça, do medo e do conformismo. Não importa se utiliza seus pés, suas rodas, sua mente, sua pele ou seu coração, o que importa é que nos insiramos nesse con/texto. Que ao ouvir os sussurros da cidade consigamos compreender (mesmo que minimamente) o que ela nos pede. Precisamos por fim levar nosso coração a ela.
Desligo o aparelho de vácuo.
Lembro-me de uma conversa que ouvi hoje no autocarro a caminho do centro da cidade. Um filho pergunta a um pai:
Pai, quando é que tudo melhora?
Quanto te habituares a isto, filho.
Apago a luz, fecho os olhos, e prometo não me habituar.
CONVITE
Aqui então eu me despeço e me despedaço de você, cara leitora e caro leitor, sem a intenção de ter deixado algum significado claro nem de ter resolvido algum problema seu, sequer tive a energia e/ou paciência de organizar as referências.
Mas e agora? E eu? Ainda poderei participar dessa dança? Desse maravilhoso cotidiano?
Sim, nessa cidade em que tudo flui, em que tudo se torna fluxo, na qual eu quero estar e sou obrigado a passar, resolvo de maneira rebelde por alguns segundos, PARAR.
ouvi-la, e nisso perceber que não quero mais me abster dos erros de meus dedos, dos erros de meus olhos. Sei agora que eles não são armadilhas grosseiras, mas sim curiosos caminhos em direção a um objetivo que nada, além deles, pode me revelar. Vou assim, nesse movimento, como se convidado a uma dança E eu, como um distinto cavalheiro não me furtaria a aceitar.
Um convite a todos a dançar!